Sempre que se fala de espiritualidade, pressupõe-se uma experiência humana no campo religioso e subjetivo da fé, alienada às demais experiências da vida. No cristianismo, quando se aborda sobre responsabilidade social, a ênfase recai no ativismo enquanto serviço prestado ao próximo, seja pela proclamação do Evangelho, seja pelas obras de misericórdia e justiça. Contudo, espiritualidade e responsabilidade social são eixos paralelos do mandamento principal das Escrituras: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo” (Mateus 22.37-39).
Assim, amar a Deus é uma missão espiritual, do mesmo modo que amar ao próximo é o exercício de uma espiritualidade missionária a serviço do outro. Estas duas manifestações cristãs evidenciam-se de forma interativa e interdependente. Por conta dessa interação, a espiritualidade cristã precisa sempre encontrar o seu caminho devocional em missão ao próximo. A espiritualidade pode ser entendida como uma experiência humana no campo da fé e a responsabilidade social e política, como uma resposta ética dessa mesma fé.
As relações sociais, políticas, econômicas e religiosas da sociedade em que estamos inseridos anunciam ou denunciam a espiritualidade desta mesma sociedade. Espiritualidade e responsabilidade social confluem-se na vida e natureza da Igreja de Jesus Cristo. De um modo geral, na cristandade, tem havido muita contradição entre a mesa do pobre e o altar suntuoso dos cristãos – e a falta de pão na primeira pode ser uma denúncia da ausência de espiritualidade no segundo. Acontece que a responsabilidade social cristã não pode tornar-se apenas um serviço voltado para o problema da falta de pão para os pobres, ao mesmo tempo que a espiritualidade não deve ser uma tarefa exclusiva em torno do altar.
Mais grave do que esta dicotomia é a constatação de que o cristianismo brasileiro, mesmo que numericamente significativo, não tenha conseguido responder, na mesma proporção de seu avanço quantitativo, às demandas de nossa sociedade, especialmente no que diz respeito à promoção da justiça. No contexto brasileiro, há várias práticas espirituais em diversas comunidades cristãs que evidenciam distorções e limitações na atividade missionária da Igreja. Se considerarmos a responsabilidade social e política da Igreja Evangélica como um desdobramento das práticas espirituais expostas nas vitrines no cenário religioso brasileiro, precisaremos rever com qual evangelho estamos comprometidos. Há uma espiritualidade de fetiche, marcada pela magia e crença no poder de objetos e amuletos. Nessa espiritualidade superficial e alienada do pão de cada dia para todos, a solução dos problemas e demandas da vida tendem a ser individualizada. Assim, a responsabilidade social da igreja tende a ser vista como uma interferência exclusiva pela via do milagre, e não como desdobramento de uma práxis evangélica transformadora.
Já outros grupos exercitam uma espiritualidade marcada pela supervalorização da estética em detrimento da ética. O serviço religioso é elaborado com todos os sinais externos de pompa e espetáculo. A espiritualidade é meramente ritualista, superficial, predispondo seus praticantes a uma missão que gira em torno do sucesso e popularidade de seus sacerdotes ou do reconhecimento de suas obras cultuais. A manjedoura, o jumento e a cruz são, no máximo, símbolos; mas os pobres recém-nascidos, os que possuem meios limitados de transportes e os que continuam em processo de crucificação em nada desfrutam de uma espiritualidade depreciadora da ética – isso quando a causa do pobre não é mera bandeira institucional e publicitária a serviço da imagem pública da instituição.
As comunidades de Jesus Cristo devem ser motivadas pelo amor a Deus e às pessoas, e não pelo amor ao dinheiro. Elas são chamadas à obediência na luta pela justiça e na prática da misericórdia. Para vencer o mal que se manifesta nas estruturas e conjunturas sociais, políticas, econômicas e culturais, elas buscam nos instrumentos estabelecidos pela sociedade civil os mecanismos para tornar a justiça um rio permanente. Numa democracia, as autoridades são todas as instâncias de poder para a prática do bem, conforme Romanos 13. Desse modo, uma igreja socialmente responsável se utilizará dos instrumentos democráticos para que a sua espiritualidade em missão tenha incidência nas políticas públicas, nos direitos do cidadão e nos testemunhos de boas obras e prática da justiça.
No Evangelho ensinado por Jesus, oramos no quarto secreto (tameion) ao Pai nosso que está nos céus, numa espiritualidade transcendente, pessoal e íntima que tem necessariamente implicações nas vivências públicas – afinal, a Igreja é o sal da terra e a luz do mundo. A oração ao Pai nosso é ao Pai da comunidade e na comunidade. Na Oração Dominical, quando se pede o pão nosso de cada dia, pede-se num gesto espiritual de oração por um bem social que pode ser acumulado ou socializado. Assim, espiritualidade e responsabilidade social são manifestações transcendentes e ao mesmo tempo inseridas nas realidades que vão se tornando história.
Pr Carlos Queiroz